José Carlos Novaes da Mata Machado tinha apenas 27 anos quando sua vida foi interrompida. Seu nome está marcado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde estudava. Em sua homenagem foi batizado um espaço de auto-organização do movimento estudantil. O Território Livre José Carlos Mata Machado é palco frequente de eventos onde a comunidade acadêmica se reúne para debater ideias. A referência reconhece a luta de um jovem estudante contra a ditadura militar instaurada no país.
Conhecido pelas pessoas íntimas como Zé, José Carlos não apenas se tornou referência para aspirantes a advogados na instituição mineira, como também foi uma liderança de projeção nacional, tendo sido vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Mesmo após ser preso no histórico congresso da entidade ocorrido em Ibiúna em 1968, manteve-se mobilizado contra o regime que havia se instaurado no país. Em função dessa posição, tornou-se vítima da tortura e morreu em 1973 na cidade do Recife, pelas mãos de agentes da Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão subordinado ao Exército.
Um olhar sobre essa história, cujas investigações até hoje não foram suficientes para fornecer todos os esclarecimentos, será apresentado no filme Zé, assinado pelo cineasta Rafael Conde, que estreia na Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte (CineBH) na noite desta terça-feira (26). A exibição, após a abertura oficial marcada para 20h, puxa uma programação estruturada para dar visibilidade ao cinema latino-americano.
De acordo com Rafael Conde, o projeto do filme existia há cerca de 20 anos. A ideia chegou a ser premiada no Festival Internacional de Roterdã (Holanda) para desenvolvimento do roteiro. “Desde então, houve vários percalços do cinema e da minha vida. Digamos assim que minha vida foi atravessada por outras produções. E somente mais recentemente consegui viabilizar a conclusão desse filme”, conta.
Rafael Conde explica que o filme dialoga com o livro-reportagem também intitulado Zé, do jornalista Samarone Lima, lançado em 1998. Ele dá destaque a correspondências entre José Carlos e seu pai, o jurista Edgar de Godoi da Mata Machado, deputado cassado em 1968 com base no Ato Institucional nº 5 (AI-5) e destacado professor da Faculdade de Direito da UFMG onde o filho estudou. As cartas trocadas por eles documentam dificuldades vividas durante o regime militar.
“É um recorte. O filme opta por abordar um pouquinho da intimidade de uma família na militância. E temos essa correspondência envolvendo o pai na luta pela legalidade, na luta pela restauração da democracia, e o filho atuando na clandestinidade. E nesse contexto, o Zé também se tornou pai. Ele era ligado à Ação Popular, organização oriundo da juventude católica. E o filme é uma ficção, que usa atores, para narrar esse percurso. Eu não vou contar a história para não dar spoiler demais, mas é uma trama complicada, que envolve uma traição que vem de dentro da família”, diz o cineasta.
Ele destaca a importância de dar visibilidade a essa história, tendo em vista a disseminação, nos últimos anos, de discursos extremistas que exaltam o regime militar. “O filme demorou a ficar pronto e deu essa sorte de ser justamente quando precisamos voltar a falar desse tema com mais força. Estou contente que ele começa agora a circular em festivais, depois vai ser lançado em sala de cinema”, acrescentou.
Raquel Hallak, coordenadora-geral da CineBH, endossa a importância das reflexões que o filme poderá proporcionar. “Acho que é um momento pra gente olhar para a tela e não perder a nossa memória. Ver o que faz parte da nossa história pra gente não regredir mais”.
Homenagem
A CineBH é organizada anualmente desde 2007 pela Universo Produção, também responsável pelas tradicionais mostras de cinema de Tiradentes e de Ouro Preto. Nesta edição, 93 filmes nacionais e internacionais (39 longas, 31 curtas e 3 médias-metragens) serão levados para as telas. A programação, que se encerra no domingo (1º), inclui filmes e outras atividades para diversas idades, todas gratuitas.
Além de assinar o filme de abertura do evento, Rafael Conde será homenageado e receberá o Troféu Horizonte junto com a atriz e diretora Yara de Novaes. As trajetórias de ambos, que seguem caminhos específicos e ao mesmo tempo entrelaçados, serão reverenciadas na cerimônia de abertura.
Professor aposentado da Escola de Belas Artes da UFMG, Rafael Conde tem longa trajetória no cinema mineiro. Por sua vez Yara é uma referência do teatro, desde a presença nos palcos como atriz e diretora até o ensino nas salas de aula.
“São nomes desse fazer artístico representativo de Minas e que mostram o cinema com arte coletiva. A Yara sempre atuando nos filmes do Rafael, como atriz ou como preparadora de elenco. O Rafael surgiu no cinema e começou a fazer filmes aos 22 anos, numa geração que era praticamente ele sozinho. E assina filmes emblemáticos envolvendo a cidade de Belo Horizonte”, diz Raquel Hallak.
Entre 1998 e 2008, Rafael Conde dirigiu seis filmes que contaram com a participação de Yara seja como atriz, diretora de elenco ou assistente de direção. Entre eles estão os longas-metragens Samba Canção (2002) e Fronteira (2008). Também são frutos dessa parceria os curtas A Hora Vagabunda (1998), Françoise (2002), Rua da Amargura (2003) e A Chuva nos Telhados Antigos (2006). Alguns desses trabalhos serão exibidos durante a programação da CineBH.
“Estou muito feliz e espero, na verdade, que essa homenagem se estenda. Porque penso que, com certeza, é uma homenagem para todo mundo que trabalhou comigo. O cinema é uma arte coletiva. Isso é importante dizer e que essa homenagem se desdobre em novos trabalhos”, diz Rafael Conde.
, Léo Rodrigues – Repórter da Agência Brasil